terça-feira, janeiro 24, 2006

"A nossa necessidade de consolo é impossível de satisfazer"

E...depois?
A aranha caiu da teia e passou a ser ninguém, a mosca alucinada passou-lhe uma razia e ela cambaleou e caiu.
Angustiada não desistiu, trepou apressada até ao cimo da parede, desenhou a sua teia num canto, naquele sitio onde três linhas formam ângulos rectos.
A mosca alienada explode em gestos de bailarina.
A aranha envolve-a de vingança, corta-lhe as asas da liberdade e cala o zunzum da sua vida.
Asfixiada, morre a mosca abraçada pela outra que lhe tem um amor de morte.
Selva dos invisíveis (ou quase invisíveis)

4 de Novembro de 1994


De que é que precisamos?
Porque terei passado mais metade da vida a roer as unhas até aos ombros?

Há quem diga que terei passado alguns dias bons da minha infância a mendigar atenção, mimo e amigos como se esse ‘feedback’ fosse vital para que continuasse a arrastar-me nos meandros do mundo bolha que recebi para viver - dia sim, dia não - em palpos de aranha.

Podemos ter pais que lambem as crias com carradas de mimo e sermos invariavelmente carentes, como se fosse um vício sê-lo. Há uns anos deram-me um livro de Stig Dagerman cujo título avança de imediato que “a nossa necessidade de consolo é impossível de satisfazer”.
Não penso alongar-me no pensamento do senhor, mas S. Dagerman confessa que procura o que o pode consolar como o caçador persegue caça. Acho que é exactamente este consolo inconsolável que jamais será suprimido pelos inconformistas e inadaptados.
A não ser que sejamos muito agradecidos, que tenhamos a vida dividida por quadradinhos postos à frente dos objectivos, e que a cruz marcada nos dê um alento tal, que isso nos sossegue o espírito nos cale e adormeça.
Pessoalmente, nunca tive muita pachorra para listinhas com ar de teste americano, essa deve ser uma das razões pela qual sou uma sobressaltada desde pequenina.
No Jardim Escola levava Tuxas (umas bonecas da época antes da anorexia nervosa) para que as miúdas mais velhas brincassem comigo.
Elas abarbatavam-se das duas bonecas que tinha (cheias de curvas, uma loura, outra morena) e mandavam-me a um canteiro apanhar terra para alimentar aquelas matronas que se fosse hoje seriam consideradas umas barbies porquinhas. E, uma vez, com as bonecas em seu poder passavam a tratar-me como se fosse transparente.
Tenho que concordar que a política usada para travar amizades não era das melhores, mas já naquela altura não tinha grande opinião de mim própria. E acho que as mulheres e homens do mundo fazem-se assim, sem grande opinião sobre si próprios. E ao redefinirem-se, rasgarem-se e reinventarem-se para que ninguém veja como sofrem, talvez (ou não) saia do casulo uma borboleta.
E a razão de termos de sofrer tanto, sentir tanto e tão intensamente o que nos dão, a falta, a ausência?
Porque é que ainda não inventaram um comprimidinho que suprima este sentimento de orfandade que nos assola, imediatamente, se nos tiram o tapete do chão, que é a metáfora para a nossa necessidade de satisfazermos as nossas vontades mais e menos básicas?
É que já inventaram tanta coisa...
E não é que o placebo da coisa, em questão já iria ajudar um milhão de carentes...
Mas, falo por mim cheia de mazelas que por mais que puxe pelo meu sorrisinho “bandeira branca” não há quem dê por ele nos limites de uma crise existencial, na faixa dos trinta, este fenómeno começa a preocupar-me.
No último verão, por exemplo, o esticanço de tempo livre da indigência levou-me a descobrir que me faltava um disco da Colectânea “Essential” do Leonard Cohen.
Assim que me vi sem ele parecia que tinha ficado sem o braço esquerdo, aquele que me equilibra. Não descansei enquanto não o reavi, pagando. O Cohen faz-me falta, não queria perder por nada o paradeiro daquela “waltz” linda do compositor judeu, inspirada num poema do Garcia Lorca. Devo ter inclusivamente padecido de febre literária e quando tive o disco nas mãos beijei-o com afectuosa ternura, como se fosse a última maravilha do mundo.
Apesar da nossa vida não ser comparável a meia centena de canções sobre a vida, não quereremos sempre dançar mais e mais músicas ao sabor do vento?
Não será esse o busílis?
Diz Dagerman que o consolo é fugaz, “sopro de um vento que mal sobe pela árvore”

Terei que pôr mais na carta?

Não será já de si difícil o caminho para chegar a Garcia e entregar-lhe a carta?

Carência: Falta daquilo que é preciso; necessidade; privação

1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Pois é... parece-me que as minhas próprias unhas só crescerão debaixo da terra.
No entanto, acho que a pessoa que lhe ofereceu o livro do Stig Dagerman deveria oferecer-lhe agora um outro livro (por sinal esgotado) do Julio Cortazar intitulado Prosas do Observatório. É um livro em que também nos confrontamos com essa pescadinha de rabo na boca que é a insatisfação, a pequenez da insatisfação, a pequenez da pequenez, os pequinois da vida... só que agora vistas de dentro para fora.

10:58 da manhã  

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