quarta-feira, janeiro 18, 2006

O dragoeiro pariu, Bosch sonhou!


Acho que tinha oito anos quando fui pela mão da minha mãe ao Museu de Arte Antiga. Apesar de ter passado ao lado de muita quinquilharia barroca, entre lustres e pratos azuis pintados à mão com paciência de chinês e com cara de companhia das Índias. Houve, no entanto, um quadro que ficaria retido para sempre dentro das desorganizadas gavetas da memória, onde vou pondo o todo entulho que tenho recebido ao longo da caminhada pós Abrilista que já vai no seu trigésimo primeiro ‘round’ e que caminha a olhos vistos para o trigésimo segundo.

O tríptico “Tentações de Santo Antão” do pintor Jeronimus Bosch, desde essa altura que ficou tatuado num lugar recôndito do meu cérebro onde ficam cativas as coisas da vida que me impressionam.

Aos oito anos não tinha com certeza noção que o que estava ali à minha frente era o pesadelo de um desgraçado de um Santo a ser vilipendiado por uma série de tentações carnais espirituais e evidentemente marginalizadas pelos Santíssimos Ofícios. Naquela altura também não saberia que os heróis espirituais de Bosch eram todos Santos, que sofriam de tormentos físicos e mentais, e, que nem por isso deixavam de ser leais à sua causa.

Entre todos os Santos, o seu preferido era Santo Antão e deve ter sido essa razão pela qual o presenteou com este Tríptico. (não era nada fácil ser herói de um pintor como Bosch)
Ingénua fiquei agradavelmente atormentada com a cromática berrante da coisa. Desde os céus azuis a resvalar no turquesa no topo dos painéis laterais aos vermelhos e púrpuras pecaminosos envergados pelos vários seres diabólicos que habitam o painel central deste quadro (x 3) absolutamente devastador.

A minha alma ainda pequenina e esponjosa deve ter sido imediatamente “possuída” pelos bispos com cara de cães, pelos demónios anões e pelos vários sátiros que saem daquela gigante e vermelha fruta podre. Não fazia a menor ideia é que Bosch, à sua maneira, era um bocado toxicodependente, porque na calada da noite, chupava as sementes amarelas do Dragoeiro, aquela árvore demoníaca cheia de braços musculosos e possantes de onde se extrai uma resina chamada sangue de drago (o nome não deve ser por acaso).
Segundo a folha explicativa que descreve o quadro exposto no Museu de Arte Antiga, estamos diante de uma “inventada unidade de espaço que integra múltiplas cenas e narrativas que preenchem o painel central e os volantes laterais do território para um formigar de seres e de episódios que desafiam a nossa interpretação e que ocupam literalmente os quatro elementos do universo (céu, terra, água e fogo)”.

Nesta frase pomposa e técnica marcou-me o verbo formigar, porque é exactamente um “formigueiro” que se sente quando nos prostramos à frente da multidão de tentações. Porque caímos lá dentro como a Alice caiu naquele buraco, onde depois tomou chá com o Coelho e o Chapeleiro Louco. E coincidência ou não, Lewis Carroll fartou-se de drogar a Alice. Com frasquinhos, cogumelos mágicos e vá se lá saber mais o quê. A identificação deve ser por isso. Talvez a Alice, coitada, seja uma espécie de Santo Antão atirada aos bichos, neste caso particular ao Lewis Carroll, que há quem diga que era um pedófilo nojento.

Como estamos de novo no patamar da tentação, regresso ao Bosch e às respectivas alucinações de Dragoeiro.

Personagem principal:

Santo Antão, ou seria Alice?

Espaço:

Céu, terra, água e fogo. A cor do céu é indiscritível.

Acção:

Um santo no ermitério a ser massacrado por demónios e homens com cara e pernas de bicho.

Ala esquerda:

Os demónios agridem-no, batem-lhe, atiram-no ao ar como se fosse uma bola de futebol e chutam-no para o chão. Assiste impávido, um sátiro com cara de camponês medieval, ou seria a padeira de Aljubarrota?

Ainda na excursão “temptation” está um pássaro com orelhas de cão, ratos com escamas, ovos de onde saem uns gémeos de bico. Pretos retintos.Passeiam também por lá um bispo de vestes encarnadas com cara de veado e uma carroça pescada de rabo na boca cujo lombo leva um pináculo de Catedral. Será que vai a cantar “ A Pedra Filosofal” de António Gedeão?

Painel Central:

Segundo Bosch não seria no centro que está a virtude, uma vez que a sua pincelada alucinada confrontou aqui o Santo com a pior das provações: A do abandono da fé. Apesar de eu não perceber, quem abandona quem!

É preso dentro desta catacumba diabólica que Santo Antão tem olhado a humanidade, ao longo dos últimos cinco séculos, enquanto aponta para uma dupla representação de Cristo escondida numa ruína.
O quererá isto dizer?

Que Cristo nos abandonou, ou que somos nós que o escondemos nas ruínas?

Se somos responsáveis e demos o sumiço ao Cristo pregado na cruz, então a invasão da terra por esses demónios aparentemente fantásticos, filhos de alucinações de dragoeiro fará mais sentido.

Ao fundo o povoado arde, tudo se esfuma.

"Ashes to ashes, funk to funky, We know major tom’s a junkie”, canta D. Bowie.

Lá voltamos ao mesmo.. Será que Bowie é a reencarnação de Bosch?

Ala direita:

Tentado pelo pecado da carne e da gula, Santo Antão que estava a tentar concentrar-se na sua leitura, vê-se rodeado de bocados de carne, de corpos disformes sem cabeça, alguns com rabo de rato. Uma mesa sustentada por um bacanal de despidos, uma ratazana que apunhala um interveniente da orgia, a raiz de uma árvore envenenada da cor púrpura do Pecado.Ao longe travam-se batalhas, explodem diques. O mal entra terra a dentro e afoga um cavalo com a água porca e contaminada. Deve ter sido essa merda que deu origem à peste negra. vejo de novo o azul turquesa onde os meus olhos finalmente repousam. Vou à boleia com um casal de camponeses que fogem, VOANDO a cavalo num peixe.

Será que foi com o neurónio esquerdo massacrado pela broa gigante do Bosch que me deu para perguntar a um padre quem é tinha sido o avô de Deus?

Tinha oito anos.


1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Aos três anos vi a pila do meu pai erecta no duche e percebo exactamente aquilo que sentiu aos oito... já agora experimente ler as tentações de São Damião, livro apócrifo que versa sobre onanismo e redenção.
Gostei do teatrinho demoníaco! Fez-me viajar por um inferno em que mafarricos e faunos nos atiram bocados de carne com sementes de dragoeiro. Será o dragoeiro uma encarnação da árvore da sabedoria?
Terá, o avô de Deus, sido um junkie infinito?
Este domingo, na missa, não tive coragem para me benzer mais de três vezes e fui incapaz de papaguear as orações que sei de cor e salteado...pensei em sexo e na virgem negra exposta num dos altares... pequei abundantemente na casa de Deus... obrigada ao Santo Antão e obrigada ao Chapeleiro louco
"Little Hem"

8:28 da manhã  

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